Tributação de Softwares – chegamos ao fim da discussão entre Estados e Municípios?
Há anos o mercado tecnológico vinha sofrendo com a insegurança jurídica atrelada à discussão entre Estados e Municípios a respeito da tributação de softwares.
Os Estados entendem que o software, quando não customizado, é uma mercadoria, uma vez que sua produção geralmente é realizada de forma uniforme e em grande escala.
Os Municípios, por sua vez, entendem que os softwares em geral são fruto de prestação de serviço de desenvolvimento do mesmo, independentemente se sua finalidade considera customização aos usuários.
As empresas do setor de tecnologia, para não precisarem tributar duas vezes o mesmo produto, acabavam por optar pelo recolhimento do ICMS ou ISS conforme análise particular do produto desenvolvido, contando geralmente com o auxílio de uma consultoria tributária para embasar sua decisão em caso de autuação fiscal.
Contudo, ainda assim, há inúmeros casos de empresas autuadas, ora pelos Estados, ora pelos Municípios, tendo que acionar a justiça para recorrer e para não sofrerem bitributação.
O que mudou em 2021 sobre o tema?
Em fevereiro de 2021, o STF (Superior Tribunal Federal) concluiu o julgamento das ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidades) 1945 e 5659 sobre o tema, e em março de 2021 publicou a decisão, colocando, assim, fim à discussão.
Em votação, prevaleceu o entendimento de que, quando o usuário compra um software, e este programa é constantemente atualizado, o mesmo não pode ser considerado uma mercadoria e sim um serviço, não importando se é um software personalizado ou padronizado – comumente chamado de prateleira.
Acerca da modulação da decisão, indicando a partir de quando os efeitos da mesma se aplicam, ficou definido que não caberá ao contribuinte o direito ao pedido de ressarcimento de qualquer valor de ICMS que tenha sido por ele recolhido, assim como aos Municípios não será permitida a cobrança de forma retroativa do ISS das operações anteriores à data do julgamento, ressalvadas as discussões judiciais em andamento.
Eventualmente, as empresas que tenham recolhido tanto o ICMS como o ISS (bitributação) sobre as mesmas operações, poderão requerer a restituição do ICMS.
A decisão traz um alívio ao mercado tecnológico, uma vez que o ISS geralmente têm alíquotas menores que o ICMS (a depender do regime tributário adotado pela empresa), além de incentivar o retorno do capital estrangeiro ao mercado de tecnologia brasileiro.
A história da tributação sobre softwares no Brasil
Na década de 1990, os bens digitais chegaram ao país e seu consumo começou a se propagar. A legislação fiscal da época não previa como os mesmos seriam tributados, e, com isso, Estados e Municípios acabaram por fazer entendimento próprio do tema.
No que tange ao ISS, vigorava à época o Decreto Lei nº 406/1968, que indicava as atividades de programação e processamento de dados como sendo prestação de serviços, essa sujeita à incidência do imposto municipal, o ISS.
Quanto ao ICMS, a Lei Complementar nº 87/1996 que versa sobre a incidência do imposto estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias, acabou consignando que a mídia utilizada na época para venda de softwares eram CDs, e para tanto, o Estado definiu como sujeitos ao imposto estadual, o ICMS.
Em 1998, o STF fez uma primeira análise do tema, por meio do Recurso Extraordinário (RE) 176.626, e a decisão veio em benefício dos Estados, pois delimitou o conceito de software, fazendo com que a incidência do imposto estadual recaísse sobre as vendas de maior volume, a saber, vendas de software em mídias físicas. Na época ficou definida tanto a tributação quanto os conceitos de software, como seguem:
- Incidência de ICMS sobre software de prateleira: (i) aquele produzido em larga escala e de forma padronizada; (ii) não desenvolvido para atender cliente específico; e (iii) vendido para o público em geral, sem qualquer distinção;
- Incidência de ISS sobre software sob encomenda: aquele desenvolvido e programado para atender necessidades específicas de cada cliente.
Naquela época o assunto parecia ter sido resolvido, contudo, com o contínuo desenvolvimento da tecnologia e o início da disponibilização dos softwares via download, novas discussões no campo tributário vieram à tona, e com isso, novas legislações, tais como:
(i) as Leis Complementares (LC) 116/2003, 157/2016, que dispõem sobre o ISS e incluíram no texto a incidência sobre “o licenciamento e a cessão do uso de software”;
(ii) os Convênios ICMS 181/2015 e 106/2017, que determinaram que o valor da base de cálculo dos softwares de prateleira não seriam mais o valor do suporte físico, mas sim o valor total da operação, incluindo a parte intangível e as vendas realizadas via download, o que acabou acirrando novamente a disputa pela tributação desse tipo de produto.
Ademais, a Receita Federal do Brasil (RFB) foi acionada por meio de inúmeras soluções de consulta a respeito da tributação de PIS/PASEP e a COFINS, uma vez que as alíquotas diferem entre prestação de serviço e mercadorias.
Uma dessas soluções de consulta tratava de importação, tendo destaque especial a Solução de Consulta (COSIT) nº. 303/2017. Nela, a RFB entendeu que o valor aduaneiro relativo à importação do software de prateleira seria definido unicamente pelo valor ou custo do suporte físico propriamente dito, excluindo portanto a incidência sobre os downloads de softwares.
Foi a partir deste cenário que, em 2017, foi protocolada a ADI nº 5.659 para o STF novamente analisar o tema, tendo sido julgada e encerrada em 2021, com decisão favorável aos Municípios, conforme citado no início deste artigo.
Possíveis implicações desta decisão para o futuro
Após a decisão do STF sobre o tema, a SEFAZ de São Paulo, órgão estadual responsável pela arrecadação do ICMS, se manifestou através da consulta de um contribuinte (23.558/2021), confirmando que não há incidência de ICMS sobre as operações com software, inclusive os padronizados, em linha, portanto, com a decisão do Supremo.
Possivelmente, veremos tais decisões sendo replicadas nos Estados, pacificando, assim, a questão. Contudo, se analisarmos esta discussão ao longo das últimas décadas, percebemos que decisões foram tomadas conforme o avanço e desenvolvimento da tecnologia.
Outrora, o software era vendido dentro de uma mídia física, e então houve um entendimento sobre sua tributação, e com a substituição dessa mídia por outras formas, como o download e o acesso via nuvem (SaaS – Software as a Service), o entendimento da tributação foi alterado. Assim sendo, será que teremos novos imbróglios com o avançar da tecnologia nos próximos anos?
Podemos dizer que nem precisamos pensar no futuro para encontrar questões sobre softwares ainda sem resposta.
Atualmente já temos um imbróglio relacionado ao pagamento dos softwares importados, que quando feitos via download sofrem incidência apenas de ISS e IOF, contudo quando acessados via nuvem adiciona-se a incidência de CIDE, PIS, COFINS e IRRF, chegando a uma alíquota total próxima de 40% do valor da operação. E aqui a questão não envolve disputa entre Estados e Municípios, mas sim o entendimento da Receita Federal sobre o tipo da operação, a qual manifestou tal entendimento em Solução de Consulta de 2017.
Outro exemplo é a utilização das mídias físicas para comercialização dos softwares. Quando compradas em separado (sem conteúdo), há emissão de Nota Fiscal e incidência normal de ICMS, por tratar-se de mercadoria física. Entretanto, quando este comprador insere o software nesta mídia e a revende, não há como separar o valor da mídia física do valor do software nela incluso, não havendo portanto uma saída fiscal do produto físico adquirido, uma vez que agora o software é entendido como prestação de serviço. E para ajudar, neste caso há margem para o Estado requisitar o recolhimento de ICMS na operação.
Avaliando o cenário da aquisição e comercialização de software no Brasil, é preciso ter cautela na aplicação da recente decisão do STF pois ela não abarca todas as questões pertinentes ao tema, e provavelmente ainda há e haverá muito o que se discutir a respeito.
Neste sentido, é importante entender que a sociedade e as relações de consumo estão em constante evolução, e os princípios, fundamentos e conceitos que nos regem não deveriam ser alterados constantemente. Precisamos que nossa legislação tributária não deixe dúvidas de quais são os tributos a serem exigidos nas operações, independentemente das mudanças tecnológicas que aconteçam. Para tal, seria preciso rever o atual sistema tributário brasileiro, defendendo uma tributação que abarque as operações em sua essência, ignorando as formas como elas ocorrem.
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Escrito por:
Charles Gularte
Contador técnico e responsável na Contabilizei. Charles Gularte é vice-presidente de Operações da Contabilizei desde 2015, responsável técnico da empresa e contador há mais de 20 anos (CRC PR-045113/O-7). Atualmente é líder do maior time de contadores certificados do Brasil, onde garante um modelo operacional escalável e sustentável, que entrega serviço, atendimento e suporte com excelência a mais de 50 mil micros e pequenos empreendedores. Formado em Ciências Contábeis pela FAE Centro Universitário e com MBA em Gestão Empresarial, Administração e Negócios pela FGV, iniciou a carreira em um escritório de contabilidade e seguiu para o mundo corporativo, onde é referência profissional quando se trata de uma rotina contábil segura, transparente e confiável no país.